domingo, 7 de dezembro de 2014

Odes maiores ao pai V



Sobrevivi à morte sucessiva das coisas do teu quarto. 
Vi pela primeira vez a inútil simetria dos tapetes e o azul diluído 
Azul-branco das paredes. E uma fissura de um verde anoitecido 
Na moldura de prata. E nela o meu retrato adolescente e gasto. 
E as gavetas fechadas. Dentro delas aquele todo silencioso e raro 
Como um barco de asas. Que fome de tocar-te nos papéis antigos! 
Que amor se fez em mim, multiforme e calado! 
Que faces infinitas eu amei para guardar teu rosto primitivo! 

Desce da noite um torpor singular, água sob o casco de um velho veleiro 
Calcinado. Em mim, o grande limbo de lamento, de dor, e o medo de esquecer-te 
De soltar estas âncoras e depois florir sem ao menos guardar tua resonância. 
Abraça-me. Um quase nada de luz pousou na tua mesa 
E expandiu-se na cor, como um pequeno prisma. 

Hilda Hilst