quarta-feira, 28 de dezembro de 2011
4. E dizia eu que tu falavas demais, gaiata. É verdade que não paravas de falar. Mesmo ou sobretudo sem palavras, com o movimento do teu corpo, a força dos teus abraços em carne viva às vezes sacudia-te, só por aflição, imagina, uns desenrascanços de timidez que me punham as moléculas a ferver - não sabia abraçar como tu, percebes? O abraço que me deste naquele fim de ano, já lá vão doze anos - terei sabido recebê-lo? Alguma vez te abracei como merecias?
Quando tu vivias, eu podia acreditar na alma, lama, mala interestelar, o caraças que tu quisesses. Porque a gente olhava para ti e via essa coisa transparente e firme, esse nó de sangue, secreções e luz a pulsar como um farol. Agora, tudo e todos me falam do espírito que permanece, os teus padres invocam-te, a ti e a dezenas de outros passeantes do Paraíso, a despachar, que asmissas querem-se também rápidas, eficientes, by the book. E eu não consigo acreditar nas almas abstractas, bolhas de ar discretas - arrotadas entre um chá e dois suspiros.
Fazes-me falta, merda - já te disse? O seráfico do teu Jesus, porque é que não me acode? Porque é que não te ressuscita - por umas horas, Senhor, o que são umas mariquíssimas horas para um gajo repimpado na eternidade?
Cachopa. A falta que fazem ao mundo as tuas certezinhas absolutas sobre o Bem e o Mal. Certezas um bocado aldrabadas, está claro, com fendas por todos os lados. Coxeavas um bocadinho da alma, lá aparecia um rasto de lama debaixo da bainha, mala feita à pressa, com a roupa engelhada de quem muito viaja. Mas que graça tinha o teu anímico coxear, garota.
Gamaste-me uns trabalhitos sobre o teu excelso mulherio - e eu gozei arabicamente a tua aflição impudica. Nunca te acusei, nunca soltei uma graçola à propos - uma só que fosse. Para te fazer sofrer um pedacinho, confesso, para que tu percebesses que eu tinha percebido. Oh, pueris, patéticas estratégias.
Tanto que eu queria agora dar-te o amor total e infantil que tinha para te dar Racionei-o a vida inteira como a porra de um chocolate de leite - por que vivemos como se o tempo nos pertencesse infinitamente, como se pudéssemos repetir tudo de novo, como se pudéssemos alguma coisa? Espero que não tenhas levado essa culpa estúpida para a tua morte. Espero que saibas que fiquei orgulhoso, impante de vaidade quando integraste no teu doutoramento os meus pobres trabalhitos. Se não fosses tu, nunca teria estudado aquelas amazonas todas - e, agora que ninguém nos ouve, posso até acrescentar que as tuas heroínas contribuíram para a animação da minha existência.
Positivamente.
Deus omnipotente em que não creio, acorda do Teu sono eterno e vai dizer à minha amiga o obrigada que eu não soube sussurrar-Lhe ao ouvido. Não Te faças surdo, Deus cruel e ocioso. Olha que eu sou capaz de rebentar contigo. Rebento, mas rebento-Te primeiro fama e glória. Ou pensas que já me esqueci do inferno que me desaguaste em África? Se sobrevivi àquele pesadelo, também sobrevivo a Ti, Deus sem dó.
Inês Pedrosa, Fazes-me falta